Solina é uma comunidade isolada formada por descendentes de escravos e que ainda hoje não sabe que a escravidão acabou. Liderada por Pai Acácio, o patriarca e conselheiro espiritual do lugar, a cidade está estagnada no passado. Não possui energia elétrica, não utilizam dinheiro, os habitantes vivem da agricultura e da pecuária familiar, em um sistema de trocas de mercadorias.
Flor, 20 anos, jovem e destemida, é querida por todos da comunidade, aprendeu desde pequena a manusear as ervas para fazer remédios e usa esse dom para ajudar Solina. Flor anseia em conhecer o mundo e ir embora do povoado assim que tiver oportunidade, para sair à procura de sua mãe, que há muitos anos fugiu dali. Algo que nem seu pai, Jorge, o braço direito de Pai Acácio, e de Vicente, o seu namorado e futuro marido sequer desconfiam.
A comunidade de Solina se prepara para a festa tradicional em comemoração ao aniversário de Pai Acácio. Aparentemente, todos os moradores estão ansiosos e alegres com esse acontecimento. Durante a festa conhecemos algumas histórias sobre a importância de Pai Acácio, algumas dessas histórias são contraditórias, pois ninguém sabe ao certo a idade dele, mas acreditam em sua força mágica. Em todas as histórias sentimos o teor mágico que o conselheiro carrega consigo, o que faz dele um ser tão especial e das pessoas tão crédulas com a sua liderança.
Após a festa, Pai Acácio morre, causando uma grande desolação na comunidade. Os moradores preparam a passagem do patriarca e agora é Jorge quem deve liderar a comunidade. Abatidos com a situação, os moradores demoram a perceber que após a morte do líder o lugar é acometido por fatos estranhos e inexplicáveis, tais como o tempo parar e não mais anoitecer ou chover na cidade.
A situação de Solina se agrava depois da morte de Seu Francisco, um senhor que passa a ficar atormentado com crises de insônia, e de Dona Inácia, a esposa de Pai Acácio. Flor, abalada pela morte de Dona Inácia, por quem tinha muito apreço, resolve fugir de Solina, mas descobre que a cidade está cercada por uma nuvem de poeira impossível de ser atravessada. Entre tantos pesares acometidos na cidade, o líder Jorge é questionado e pressionado para reverter toda a situação, mas como não possui a natureza de um líder, acaba deixando a cidade em caos.
Nesse período turbulento, chega à cidade João, 28 anos, um Caixeiro-viajante que não se lembra de como conseguiu chegar até ali. Jovem, trajando calça jeans, camiseta e tênis, com o carro cheio de eletrônicos, roupas, calçados e relógios, ele parece estranho demais para os moradores do lugar, que logo o enxergam como uma ameaça, um “capitão do mato” com o intuito de capturá-los. Ele tenta explicar que não existe mais escravidão há muito tempo, mas isso é visto como um truque por todos. Pressionado, Jorge aprisiona-o e o tira do convívio dos demais moradores.
Flor, mesmo desconfiada, vê em João a possibilidade de fugir de Solina. Ela então o chantageia para ele a levar dali. Acreditando que, uma vez que João conseguiu entrar, certamente saberia como sair. Na fuga eles encontram Betina, que também planejava sair da cidade às pressas depois de começar a sofrer abusos por parte de seu marido Antônio por ela desconfiar da liderança de Jorge. Flor, João e Betina seguem o caminho a fim de fugir, mas se deparam com a nuvem de poeira que cerca o vilarejo.
Os três então voltam para Solina, onde Flor exige que o pai tome alguma atitude com relação a Antônio. Jorge o pune e, após uma conversa com Flor na qual ela diz acreditar que João está dizendo a verdade, Jorge resolve deixar João livre para conviver com os demais.
Flor e João começam a se aproximar, mas a situação piora quando todos os animais somem e as plantas não crescem mais, sendo assim, Jorge decide racionar a comida, temendo que as reservas não durem por muito tempo, causando indignação entre os habitantes de Solina.
A nuvem de poeira se agrava e vai, aos poucos, se fechando ao redor do vilarejo, cobrindo pastos e casas. Com medo de ser o fim de Solina, Jorge apela para os rituais de magia de Pai Acácio, mesmo sabendo que não surtiram efeito por serem inúteis.
Flor mostra para o pai de que é hora de deixar o passado para trás e não temer o futuro, pois é a única maneira de seguir em frente. Ela queima todos os vestígios que restavam de Pai Acácio, e essa atitude faz com que finalmente a chuva volte a cair e o sol a se pôr no vilarejo.
Solina finalmente se abre para o mundo. João segue seu caminho e vai embora.
Flor decide ficar e reconstruir Solina.
Quantas heroínas negras já passaram pelas telas de cinema ao redor mundo? Eu cinéfila desde os 10 anos de idade não me recordo de nenhuma. Cresci com referências distorcidas e foi no percurso profissional que passei a me enxergar. Eu, mulher negra do interior do Brasil não podia seguir contando as mesmas histórias que via no cinema e na tv. Reorganizei tardiamente minha rota e me perguntei: Qual a história que só eu posso contar? Qual a referência que eu quero que mulheres como eu tenham? Foi assim, aliando desejo e literatura fantástica, que nasceu meu próprio universo: Solina.
Encontrei na história de Flor, protagonista de Solina, a possibilidade para falar sobre minha relação de pertencimento ao lugar onde nasci e às tradições que muitas vezes me amarram. Flor é uma jovem negra que vive em uma comunidade harmônica, liderada por homens leais às suas tradições e distante dos centros urbanos. Apesar de sentir-se parte daquela comunidade, sua vontade de partir torna-se latente quando Flor percebe que sua vida está destinada a um único caminho. É nesse lugar que mora o conflito, ir ou ficar?
Assim como as mulheres contemporâneas, Flor descobre que há escolha. Ela não precisa ficar e perpetuar a tradição, mas também não é obrigada a partir. Ela pode ser dona da própria vida, a mudança é ela quem faz.
Somos determinados pelo lugar onde vivemos ou determinamos esse lugar? É essa a pergunta que faço a mim e à Flor. Na narrativa a resposta chega na medida em que a personagem toma consciência de que, ao se transformar, ela também muda o destino de Solina. Ficar pode ser também uma forma de partir.
Ao me reconectar com a minha história familiar e com Goiás, estado do centro-oeste brasileiro em que cresci, encontrei referências essenciais para a construção dessa narrativa. Investigando minhas memórias cheguei às histórias quotidianas de minha avó. Fábulas que podem ser tão parecidas com a realidade que há quem diga que são reais.
É nesse híbrido entre realidade e fantasia que essa história acontece, numa comunidade que chega ao limite da desolação, a partir da liderança dos homens. A existência do lugar só é mantida a partir de uma nova ordem liderada por nossa protagonista, Flor. Solina traz elementos importantes de serem discutidos na sociedade contemporânea. Uma história potente, com uma narrativa ancorada na fantasia, e na necessidade de transformação social, fazendo com que o filme seja atual e necessário, sem ser panfletário, porque é sobretudo uma história de heroísmo.
Assim como Flor, cresci em um lugar isolado, agrário e tradicional, onde abriga há mais de 200 anos a maior comunidade de remanescentes de escravos do Brasil, os Kalungas. Eles são portadores de tradições históricas e têm uma cultura rica e dinâmica. Parte de minha inspiração também vem dessa comunidade, onde aprendi sobre resistência, sustentabilidade e convivência.
Dito isso, como vou contar essa história? As principais referências estéticas, na construção da narrativa, atuação, tom e linguagem são os filmes “Atlantique” de Mati Diop e “Beasts of the Southern Wild” de Benh Zeitlin. Esses filmes se aproximam daquilo que eu pretendo trabalhar em Solina, uma atuação realista, gerando uma naturalidade, mas que, ao mesmo tempo, tem a intenção de investigar a própria alma da personagem.
Minha direção aposta ainda no uso de planos sequências transmitindo aos telespectadores a ideia de um tempo arrastado, que se faz longo, aliado ainda ao ritmo de cenas mais lentas, que expressam nos detalhes os sentimentos e os conflitos morais e psicológicos experimentados pela protagonista. O trabalho com a fotografia será para evidenciar o contraste entre a terra clara da locação, o sol forte do centro-oeste do Brasil com a pele negra dos personagens e trazer uma sensação de calor, brilho, secura e exaustão. Essa estética das imagens será fruto de um intenso diálogo com a direção de fotografia, que irá privilegiar uma câmera estática, com planos que nos transportam à exaustão do tempo vivido na cena, mas também usarei suaves movimentos demarcando a mudança do local a partir de quando Flor assume uma posição mais ativa naquele espaço.
O conceito inicial da direção de arte será dado a partir da imagem da própria locação: comunidade quilombola Vão de Almas, localizada em Goiás. A ideia é valorizar as construções locais e evidenciar os tons predominantes de amarelo-palha, laranja-terra e o branco que estoura sob a paisagem. Nessa locação as casas são de adobe com telhados de palha e sustentadas por vigas de madeira.
A montagem do filme se dá através de um ritmo lento com menos cortes que o habitual em um cinema clássico. Uma montagem que destaca ainda mais a mise-en-scène deixando em mais evidência o que é posto na cena, o elemento da atuação, o enquadramento e a composição estética.
A sonoridade do filme é realista e fará uso dos diversos elementos sonoros da comunidade: o canto dos pássaros, o som da água, o bater no coco para a produção de óleo. A trilha sonora passará por dois momentos, o primeiro, antes da morte de Pai Acácio, será uma trilha com ritmo e instrumentos usados na música negra, sobretudo africana, como Umbigada, batuque e samba e após a morte é um momento que a trama fica mais misteriosa e melancólica, a trilha dará espaço para instrumentos como o violino e o violoncelo, dois instrumentos de cordas que geram sensações de aflição, mas também de contemplação.
Por todos os elementos que foram levantados e por dar lugar a uma paisagem inédita no cinema, vamos contar uma história única de uma heroína brasileira, que une identidade, tradição e um sentimento universal cada dia mais experimentado na sociedade atual: É preciso mudar!
SOLINA é uma fábula realista, onde a mudança que inquieta Flor chega a todos nós, saindo das telas, esse impulso de que é possível fazer diferente, apesar de tudo, vai alcançar nosso espectador ao redor do mundo.